Repúdio à revitimização da vítima de violência doméstica

08/07/2019 Opinião, Publicações

Em 15 de dezembro de 2018, a advogada Luciana Sinzimbra, inscrita na OAB-GO, foi severamente atacada por um agressor, à época, seu namorado Victor Augusto do Amaral Junqueira. Sofreu o que incontáveis mulheres sofrem, independente da sua condição financeira, de ter ou não uma família, de ser ou não cristã, de ser ou não branca. A advogada representa um exército de mulheres que, mesmo com medo, conseguiu ter forças para denunciar o companheiro agressor.

Luciana expôs o sofrimento que tantas mulheres passam por serem agredidas ou discriminadas pela circunstância de ser uma mulher. Uma mulher brasileira do século 21.
Em plena contemporaneidade de tratados internacionais, normas constitucionais e infraconstitucionais que coíbem a prática de vitimização da vítima e inspiram a sociedade sobre a prática de igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, ainda se verifica que muitos não entenderam ou fingem não entender o que tais normas pretendem.

Após a instauração do Inquérito Policial, esse fato veio à tona novamente em julho de 2019, quando o agressor foi detido ao descumprir medida protetiva. Até então aguardava o julgamento em liberdade.

Um dos advogados do agressor se manifestou em meios midiáticos afirmando que em seus 30 anos de profissão, aprendeu que ninguém agride ninguém por acaso e, dentro dessa premissa, os vídeos não devem ser levados em consideração. Asseverou, ainda, que as pessoas espalham apenas aquilo que veem como apelo popular, que os menos favorecidos não têm voz.

As afirmações acima, vindas de um profissional do direito que, presume-se possuir conhecimentos mínimos sobre o nosso ordenamento jurídico, demonstra o quão longe estamos de praticar as garantias constitucionais e como a sociedade ainda é cruel e preconceituosa.

Os vídeos produzidos pela vítima, amplamente divulgados pela mídia, demonstram a fúria e agressividade dos socos desferidos, além do enforcamento a que a advogada foi acometida. Ainda assim, muitos ainda querem saber o porquê, o motivo, o que a vítima fez que tirou o agressor do sério e o fez quase matar, e em muitos casos, assassinar sua companheira.

Quando uma mulher não aceita a ameaça ou lesão aos seus direitos ou bens jurídicos e exige respeito às suas garantias constitucionais, leva “fama” de briguenta, de chata, de que provocou a agressão sofrida. O agressor se torna a vítima, para muitos.

A mulher “boazinha” é aquela que aceita a humilhação, a agressão verbal e física, a afronta à sua dignidade. Para muitos, essa é a mulher virtuosa.

A existência de uma Constituição que fala tanto de igualdade em uma sociedade ainda tão desigual é um fato que expõe a ausência de sentimento coletivo constitucional.

Uma Constituição se cumpre verdadeiramente e uma democracia se realiza na sociedade e pela sociedade. O direito deve ser introjetado na consciência popular de tal forma que não haja dúvidas de que, quando uma mulher é lesada ou agredida, ou até assassinada pelo fato de ser mulher, as pessoas percebam o insulto aos princípios e costumes coletivos.

O direito escrito deve se tornar o costume de um povo, gerar uma consciência coletiva que não aceita mais a violação ao regramento jurídico. O Poder Judiciário atua quando o litígio está instaurado, mas a sociedade precisa efetivamente vivenciar o texto legal no dia a dia.

O direito não acaba com o preconceito, o direito combate a manifestação do preconceito e pretende que a sociedade compreenda que o lugar da mulher é onde ela queira estar e não onde as pessoas queiram que ela esteja.

Enquanto olharem a mulher de maneira diferente porque acham que ela fala demais, ou sonha demais, ou trabalha demais, ou exige demais, as leis deverão ser drásticas até que esse preconceito seja extirpado da coletividade.

Axiologicamente, resta claro que aquele que agride física ou psicologicamente e restringe os direitos de uma mulher, é fruto de uma família onde não houve tratamento respeitoso de homens frente às mulheres que compõem aquela ascendência. Evidentemente, aquele que bate em mulheres não respeita nem a si mesmo e seria demais pedir que respeitasse o seu próximo.

Mas, como jurisconsultos, temos que relembrar essa perspectiva todos os dias pois estamos inseridos em uma sociedade contaminada de agressividade e preconceito que justifica seu ódio pela busca da paz. Violência não gera paz, violência gera violência.

Não é um caminho fácil, os casos de feminicídio ainda estão altos, o que reflete a crueldade em que nossa sociedade ainda está mergulhada.

A violência não para na porta de casa, mas o ambiente de violência é reprisado na rua, no convívio social, nas próximas gerações e só tende a se alastrar através daqueles envolvidos neste contexto, é o caos instaurado. O caos leva um país à ruína em todos os sentidos e deve ser combatido.

Afirmar a igualdade entre os gêneros não é um assunto apenas feminino, mas um tema pertinente à democracia, à sociedade. O que se projeta é a ausência de preconceito e agressões contra as mulheres, estas devem ser respeitadas pois são sujeitos de direitos, também.

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2018, o número de mulheres no Brasil é superior ao de homens. A população brasileira é composta por 48,3% de homens e 51,7% de mulheres.

Fato é que as mulheres compõem a maioria da população brasileira e ainda são desrespeitadas apenas por serem mulheres. A sociedade precisa se ver como um todo regido por uma Constituição Federal que não exclui, mas visa a isonomia de direitos para todo o povo. Um país saudável é aquele que tem consciência que seus direitos são para TODOS.

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Ariana Garcia e Lana Castelões são conselheiras seccionais da OAB-GO e presidente e vice, respectivamente, da Comissão da Mulher Advogada (CMA)

 

As opiniões manifestadas neste espaço refletem as ideias dos autores e não necessariamente o posicionamento institucional da Ordem dos Advogados do Brasil – seção Goiás

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