A ausência de justa causa para o ajuizamento de queixa-crime (ação penal privada) e a atipicidade da conduta permitem o arquivamento do processo penal por meio de Habeas Corpus, segundo a jurisprudência assentada no Superior Tribunal Federal.
O entendimento levou a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a conceder liminar para trancar ação penal movida por um empresário que se sentiu caluniado em um processo movido contra si. O crime vem tipificado no artigo 138 do Código Penal ("caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime").
A queixa criminal foi uma resposta ao ajuizamento da ação de nulidade de negócios jurídicos com declaratória de inexistência de relação jurídica, com pedido de danos morais, feita por seu sobrinho — que é advogado. A demanda aguarda julgamento no primeiro grau.
Ele processou o tio argumentando ter sido usado como laranja. Ele relata que, quando jovem, assinou vários documentos em que aparece como responsável por uma empresa. O crime de estelionato é tipificado no artigo 171, caput, do mesmo Código.
Sem dolo específico
Ao conceder a ordem liminar, o desembargador Diógenes Hassan Ribeiro, relator, disse que aceitava o HC diante da constatação de que o advogado estava sofrendo coação ilegal. Assim, justificou, não se poderia esperar a regular tramitação do processo.
‘‘Destarte, na ocasião de expediente que visa a apurar fato manifestamente atípico, como pela ausência de dolo específico de cometer o delito contra honra, não é exigível submeter o acusado ao trâmite de um processo e de procedimentos, o que, por si só, já conflagra dano, prejuízo, passível de ser reparado pela via da presente impetração’’, escreveu no acórdão.
Para o relator, no mérito, efetivamente, não há justa causa para o exercício da ação penal, pela ausência de dolo específico da conduta imputada ao advogado. ‘‘E, assim sendo, por não estar presente o elemento subjetivo do tipo penal em destaque, evidenciada está a atipicidade do fato’’, escreveu.
Citando parecer do Ministério Público, o relator entendeu que os documentos presentens nos autos não permitem vislumbrar que o sobrinho tenha agido com a intenção de ofender a honra do tio. Ou seja, para configurar crime de calúnia, dentre outros elementos, é necessário que exista intenção dolosa de ofender a honra da vítima. O acórdão foi lavrado na sessão de julgamento do dia 19 de dezembro.
O ‘‘laranja’’ da família
Os fatos que deram início à ação judicial se passaram no verão de 2001, segundo registra o Inquérito Policial 538/2013/100317/A, concluído pela 17º DP de Porto Alegre em agosto de 2013. Este inquérito indiciou o empresário pela prática do crime de estelionato.
Neste documento, o advogado, em busca de seu primeiro emprego, conta que foi convidado a trabalhar com o tio na sede de suas empresas, na capital gaúcha. Fazia de tudo um pouco: tirava xerox de documentos, trabalhava como office-boy e, muitas vezes, servia de motorista do empresário. Para executar estas tarefas, um salário mínimo por mês, além das passagens. Não teve a Carteira do Trabalho assinada.
De acordo com o processo, certa ocasião o empresário perguntou a idade do sobrinho, que disse ter 23 anos. O tio então pediu que assinasse vários documentos para uma empresa de incorporações e participações. Explicou que tais assinaturas iriam lhe ajudar a conseguir um empréstimo para alavancá-la no mercado.
Depois deste pedido, surgiram outros, sob o argumento de que se tratava de ‘‘documentação complementar’’. À autoridade policial, o atualmente advogado admitiu que não chegou a ler nenhum dos documentos, pois, além de achar que estava colaborando com o empreendimento, confiava inteiramente no tio. Esta situação perdurou até meados de 2004, quando deixou a empresa e entrou para a Faculdade de Direito.
As consequências desta omissão começaram a aparecer quando ele estagiava em escritórios de advocacia. Certo dia, ao receber o seu salário, foi informado pelo banco que o montante (R$ 600) estava penhorado. Informado da razão, ele procurou o tio, que se esquivou em dar explicações. A secretária da empresa informou-lhe que a penhora se referia à execução de dívida trabalhista da tal incorporadora.
Após consultar a Junta Comercial de São Paulo, o advogado relata ter descoberto ter sido vítima de um golpe. Afirmou à polícia que tratava-se da aquisição de 98,5% de uma empresa em que foi usado como ‘‘laranja’’. Afinal, ganhando salário-mínimo, não teria condições de comprar a quase totalidade de uma firma avaliada em R$ 6 milhões.
O advogado sustenta que a situação lhe traz, até hoje, inúmeros dissabores. Relata que, a qualquer momento, pode ter valores sequestrados no banco para honrar contas e compromisso assumidos pela incorporadora administrada pelo tio, em função de negócios simulados.
Fonte: Site Consultor Jurídico