A educação é indicada na atual Constituição Federal de 1988 como direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser promovida com a colaboração da sociedade. O ensino também é reconhecido como direito social fundamental e de cunho subjetivo, fundamentado em normas-programa, segundo o artigo 6º da Lei Fundamental.
Com a finalidade de cumprir tal desiderato, o inciso XXV do artigo 7º e o inciso IV do artigo 208, ambos da Lei Suprema de 1988, garantem às crianças com até 05 anos de idade acesso gratuito à educação infantil a ser prestada em creches e pré-escolas. Nessa seara, a creche se tornou um locus de educação e não de mera assistência social.
Certo, portanto, que a educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas asseguram, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola.
Por determinação do §1º do artigo 211 da Lei Maior de 1988, a oferta de creches é de atribuição prioritária dos Municípios, devendo tais entes contar com cooperação técnica e financeira da União e dos Estados.
Destarte, nota-se que a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, definiu um padrão de relações entre os entes da federação com forte diretriz descentralizadora, pois foi estabelecido um rol significativo de competências político-sociais compartilhadas entre as esferas de governo.
Na mesma toada, a partir da promulgação da atual Lei Fundamental de 1988, a creche foi colocada na agenda governamental, sendo que a mencionada descentralização não significa que os níveis de governo mais abrangentes deixem de exercer um papel em relação às políticas descentralizadas.
No caso especial das creches, a União passou a exercer um papel central no processo de constituição dessa política por meio da edição de normas gerais e ações federais para apoiar o município na ampliação e na distribuição da oferta de vagas.
Exempli gratia, o Estatuto da Criança e Adolescente – Lei federal n. 8.069 de 1990 – e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – Lei federal n. 9.394 de 1996 – aduzem que compete ao município materializar o acesso à creche, à pré-escola e ao ensino fundamental, respectivamente in verbis:
Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:[…]IV – atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a cinco anos de idadeArt. 86. A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
Art. 11. Os Municípios incumbir-se-ão de:[…]V – oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas, e, com prioridade, o ensino fundamental, permitida a atuação em outros níveis de ensino somente quando estiverem atendidas plenamente as necessidades de sua área de competência e com recursos acima dos percentuais mínimos vinculados pela Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento do ensino.
Interessante destacar que o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001 a 2010 determinou que os municípios atendessem em creche 50% das crianças com até três anos até 2010, estabelecendo padrões mínimos de infraestrutura para o funcionamento adequado das instituições públicas e privadas de educação infantil.
Outras duas leis federais influenciaram diretamente na educação infantil em creches e pré-escolas: Lei n. 11.114 de 2005, que tornou obrigatória a matrícula no ensino fundamental aos seis anos de idade, e a Lei federal n. 11.274 de 2006, que instituiu o ensino fundamental com duração de nove anos. Assim, a criança de seis anos migrou da educação infantil para o ensino fundamental, possibilitando a abertura de novas vagas nas pré-escolas e nas creches.
Do Plano Nacional de Educação de 2001 a 2010 e das Leis n. 11.114 de 2005 e 11.274 de 2006, extrai-se que a União, cada vez mais, tem adotado diretrizes gerais para a educação nacional e critérios para a alocação de vagas em creches, pré-escolas, ensino fundamental, dentre outros níveis de ensino.
No que concerne à adoção de critérios para prioritários para o acesso às vagas em creches e pré-escolas, através da Ação Brasil Carinhoso de 2012 (programa social referente ao Plano Brasil Sem Miséria que objetiva retirar da extrema pobreza todas as famílias com crianças até seis anos e, ao mesmo tempo, visa aumentar o acesso dessas famílias a creches e serviços de saúde), a União modificou a lei que cria o Programa Bolsa Família (PBF) e ampliou o benefício de transferência de renda às famílias com crianças de até 06 anos de idade[1].
Além disso, o programa consiste na transferência automática de recursos financeiros, sem necessidade de convênio ou outro instrumento congênere, aos municípios e ao Distrito Federal. O montante é calculado com base em 50% (cinquenta por cento) do valor anual mínimo por matrícula em creche pública ou conveniada, em período integral e parcial, definido para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
Atualmente, os recursos do Programa Brasil Carinhoso 2018 são destinados aos alunos de zero a 48 meses, matriculados em creches públicas ou conveniadas com o poder público, cujas famílias sejam beneficiárias do Programa Bolsa Família[2].
Em sintonia, a Lei n. 13.005 de 2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 a 2024, aduz o seguinte:
METAS E ESTRATÉGIAS
Meta 1: universalizar, até 2016, a educação infantil na pré-escola para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade e ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE.Estratégias:[…]1.2) garantir que, ao final da vigência deste PNE, seja inferior a 10% (dez por cento) a diferença entre as taxas de frequência à educação infantil das crianças de até 3 (três) anos oriundas do quinto de renda familiar per capita mais elevado e as do quinto de renda familiar per capita mais baixo;[…].14) fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso e da permanência das crianças na educação infantil, em especial dos beneficiários de programas de transferência de renda, em colaboração com as famílias e com os órgãos públicos de assistência social, saúde e proteção à infância;
Já o Acórdão n. 10217/2017 do Tribunal de Contas da União, determinou ao Município de Goiânia/GO o seguinte:
1.6. Determinações/Recomendações/Orientações:1.6.1. determinar à Prefeitura Municipal de Goiânia que adote, no prazo de 180 dias, as seguintes providências:a) promova rotina de priorização de acesso às unidades de educação infantil com relação às crianças oriundas das famílias economicamente mais carentes, conforme dispõe a Lei 13.005/2014 – Meta 1 – Estratégias 1.2 e 1.14; e Lei 13.348/2016, art. 1º (item 3.2 do relatório da equipe);b) publique, a cada ano, levantamento da demanda manifesta por educação infantil em creches e pré-escolas, conforme dispõe a Lei 13.005/2014 – Meta 1 – Estratégia 1.16 (item 3.3 do relatório da equipe) ;c) promova o efetivo funcionamento das unidades de educação infantil financiadas pelo programa Proinfância, CMEI’s Buena Vista III (ID 24837) e Residencial Jardins do Cerrado 4 (ID 24836), conforme preceitua o art. 1º, § 1º, inciso XX da Portaria Interministerial 424/2016 (item 6.1 do relatório da equipe); (grifo nosso)
Logo, além de induzir a ação dos municípios na oferta de creches por meio da edição de normas gerais e estímulos financeiros, a União prioriza o público-alvo a ser atendido, focando a prestação dos serviços às crianças mais pobres, prática permitida pelo caput e §§1º e 4º do artigo 211 da Constituição Federal de 1988.
É importante destacar que a educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.
Tal prerrogativa jurídica impõe ao Poder Público, por razão da indisponibilidade da educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola em favor das crianças até 5 (cinco) anos de idade. Para o Supremo Tribunal Federal:[3]
[…] A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). – Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. – […] – Os Municípios – que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. […] No ano de 2019, a Secretaria Municipal de Educação adotando a orientação do Acórdão n. 10217/2017 do Tribunal de Contas da União, determinou ao Município de Goiânia/GO a priorização de vagas as famílias de baixa renda, assim sendo, a SME reservou 50% (cinquenta por cento) das vagas disponíveis na Educação Infantil para novatos às crianças que possuem o Bolsa Família.
Agora em 2020, a Secretaria Municipal de Educação (SME) modificou uma vez mais os critérios e conforme sítio eletrônico da prefeitura de Goiânia, transcrevo:
A partir de 2020, o número de CPF da própria criança será obrigatório para quem quer fazer matrículas na educação municipal, bem como alunos veteranos que queiram fazer transferência e renovação de matrículas. A mudança servirá para dar mais realidade às demandas de vagas manifestas na cidade, uma vez que a criança terá CPF único, não mais será cadastrada em nome de pais e responsáveis.Outra mudança para 2020 é na prioridade de vagas para novatos na Educação Infantil. Até 2019, beneficiários do Bolsa Família tinham preferência na reserva de vagas. Em 2020, mães trabalhadoras que comprovarem vínculo empregatício terão 40% das vagas em Cmei e CEI. Portadores do Bolsa Família terão 20% das vagas e o restante dos 40% serão para a população geral.
A Secretaria Municipal de Educação (SME) reduziu as vagas para os beneficiários do Bolsa Família de 50% em 2019, para 20% em 2020, logicamente um retrocesso as diretrizes determinadas pelo Acordão do TCU.
Portanto, não cabe a qualquer Município ou Estado da Federação criar critérios para o acesso às vagas as creches ou pré-escolas diferentes daqueles previstos pelas diretrizes gerais estabelecidas pelas União.
Em verdade, cabe ao Município goianiense obedecer ipsis litteris as determinações objetivas previstas no Acórdão n. 10217/2017 do Tribunal de Contas da União, quais sejam, promover rotina de priorização de acesso às unidades de educação infantil com relação às crianças oriundas das famílias economicamente mais carente; publicar, a cada ano, levantamento da demanda manifesta por educação infantil em creches e pré-escolas; e promova o efetivo funcionamento das unidades de educação infantil financiadas pelo programa Proinfância, CMEI’s, Buena Vista III.
Todos em regra devem ter acesso à educação, porém o acesso deve sempre ser priorizado aos mais necessitados e cabe ao Município de Goiânia assegurar a melhor regra de acesso à luz das determinações do TCU, pois nos dizeres de Nelson Mandela “A educação é a ferramenta mais poderosa que podemos usar para mudar o mundo”.
[1] Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12722.htm
[2] Fonte: http://www.fnde.gov.br/programas/brasil-carinhoso/sobre-o-plano-ou-programa/sobre-o-brasil-carinhoso
[3] Fonte: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=354801
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Clodoaldo Moreira Dos Santos Júnior é pós-doutor em Direito Constitucional na Itália, advogado e professor universitário. Sócio fundador Escritório SME Advocacia, Conselheiro da OABGO; Presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OABGO, Membro Consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB NACIONAL, Arbitro da Cames do Brasil.
As opiniões manifestadas neste espaço refletem as ideias dos autores e não necessariamente o posicionamento institucional da Ordem dos Advogados do Brasil – seção Goiás